Uma bomba na cabeça de Maomé
1. O título do texto de opinião do director da revista islâmica portuguesa Al Furqán, Yiossuf Adamgy, hoje editado no Público a propósito da polémica sobre os cartoons publicados na Noruega e na Dinamarca, é este: “A liberdade de expressão deve ter limites”. Trata-se de um título inequívoco a respeito do que significa a liberdade de expressão do ponto de vista oficial islâmico. “Deve” é o verbo decisivo na frase do título, significando a norma política que os muçulmanos, tendo o poder, impõem a partir do dogma religioso que é o seu. Do ponto de vista de Adamgy, que não é o ponto de vista pessoal de Adamgy mas o do dogma islâmico que Adamgy representa, não deve haver limites para o poder dos dogmas religiosos (o problema nem se lhe põe), só os deve haver para a liberdade de expressão. O Ocidente passou — ou ainda passa — por um processo histórico hiperbolicamente designado por “Iluminismo”, ao longo do qual a tolerância e a liberdade se tornaram princípios de orientação e de conduta superiores às exigências de respeito pelo dogma religioso que, durante 1700 ou 1800 anos, se impôs a ponto de o Ocidente ser globalmente designado e conhecido por Cristandade. O senhor Adamgy e seus parceiros dirigentes muçulmanos por todo o mundo mostram uma inteligência profunda das implicações desse processo. O cartoonista que desenhou Maomé com uma bomba na cabeça não lhes fica atrás.
2. Invocar a responsabilidade como limite que deveria ter impedido os jornais escandinavos de publicar os cartoons e o próprio cartoonista de os desenhar, como ouvi o director do Público fazer esta manhã no Fórum TSF (repetindo, aliás, o que escreve no seu editorial de hoje), é de todos o argumento mais inquinado com que se intervém nesta polémica. A responsabilidade, vista assim, significa cálculo de oportunidade política, por sinal uma prática muitíssimo visível nos hábitos que aquele jornal adquiriu desde que é dirigido por quem é. A responsabilidade que incumbe a quem defende a liberdade de expressão é uma responsabilidade ilimitada pelo exercício dessa liberdade, não é a gestão casuística das conveniências e inconveniências que dela resultam. É por isto que o jornalismo se mostra hoje, ao mesmo tempo, domínio imprescindível para a concretização da liberdade de expressão e terreno profundamente minado onde essa liberdade entra em conflito com poderes inumeráveis.
3. Não por acaso volta a ser a sátira o casus belli deste vendaval. A sátira e a caricatura são práticas da tradição artística e literária. Podemos discordar da iconoclastia implícita na atitude do cartoonista mas, muito antes de a liberdade de expressão se tornar um valor político no Ocidente, a arte e a literatura consagraram a liberdade de se ser iconoclasta em paralelo à liberdade de criar novos ícones. O lugar do ponto de vista artístico na imprensa contemporânea é, a despeito das aparências, reduzidíssimo, sendo o cartoon o emblema dessa presença residual. A ligação do cartoon à tradição cómica — com a sua irreverência constitutiva — é inseparável da reacção política, tanto islâmica como ocidental, à imagem de Maomé com uma bomba na cabeça.
4. Os dirigentes islâmicos e ocidentais (estes últimos com excelentes razões para se preocuparem com a má disposição dos primeiros) não deveriam esquecer-se de que há muito quem não tenha esquecido a fatah lançada contra Salman Rushdie e os seus Versículos Satânicos. Um escritor viveu anos sob ameaça de morte por causa de ter escrito um livro. Há escritores e intelectuais presos e perseguidos por motivos semelhantes em países de orientação islâmica. Há, pois, motivos para pensar que a mão do cartoonista não agiu sozinha: muita gente, incluindo uma boa dose de dirigentes islâmicos, pôs aquela bomba na cabeça de Maomé. E, se o Islão determina que Maomé não tenha rosto nem cabeça, pense primeiro no rosto e na cabeça de quem tem direito a ter uma coisa e outra. A ver se, ao menos, conseguimos ler o jornal em paz.
Adenda: Também estou capaz de concordar com o Groucho, quando me diz que era escusado afixar aqui um cartaz tão extenso, bastando, em vez, subscrever estas palavras.
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