Quase uma epístola (mas directa ao assunto!)
Caríssimo Eduardo Pitta
Agradeço-lhe, antes de mais, o comentário que me dispensou. Como o Eduardo sabe, nem toda a gente preza a conversa, esse abençoado privilégio.
Parece haver um ponto que nos separa. O Eduardo põe a natureza de certo tipo de jornalismo, que seria o do dinamarquês Jyllands-Posten, acima ou à frente de qualquer debate sobre liberdade de expressão. Eu não sei dinamarquês para decidir se o dito periódico vive ou não vive da arruaça. Que a notícia do Público sugere que, pelo menos, viveu neste caso das caricaturas é à primeira vista uma conclusão aceitável. Mas não é menos aceitável, com base exactamente na mesma notícia, concluir que o Jyllands-Posten quis fazer um teste aos limites que os cartoonistas da Dinamarca colocavam à sua própria liberdade de caricaturar e satirizar. A resposta ao teste — infelizmente para o Sr. Seidenfaden, em cujo testemunho eu e o Eduardo necessitamos de confiar — provou a verosimilhança da história contada pelo autor do tal livreco sobre Maomé: houve 28 ilustradores, em 40, que recusaram o convite do Jyllands-Posten, tal como já houvera 1 ou 2 (em, pelos vistos, 3) que se negaram a ilustrar o opúsculo. Os 12 aceitantes viram os seus cartoons publicados e, apesar (ou, quem sabe, por causa) da minoria esmagadora que representavam entre colegas do mesmo ofício, obtiveram o sucesso que se sabe.
Que desta história tivessem de resultar embaixadas destruídas e bloggers ameaçados de morte, além de manifestações onde se pedia a execução dos cartoonistas, esse, caríssimo Eduardo, tenha paciência mas é um argumento que não vai lá sem passar por um problema de liberdade de expressão, seja qual for a latitude que lhe dermos. Arruaça ou não arruaça, sensatez ou insensatez, de extrema-esquerda ou de extrema-direita, cosmopolita ou xenófobo, o Jyllands-Posten estava no direito de publicar os cartoons como os cartoonistas estavam no direito de os desenhar a convite do Jyllands-Posten. É esse direito que lhes é negado por quem levou, pelas minhas contas, que são iguais às do Eduardo, quase 4 meses bem contados a transformar 12 cartoons num escândalo político internacional.
Eu pouco tenho entendido das súbitas transições temáticas de Maomé para Auschwitz, que o Eduardo não foi o único nem o primeiro a fazer. O João Paulo Sousa já tentou, aí mesmo ao seu lado, dar resposta a tão enigmática deriva. Oiço dizer que, numa parte qualquer do admirável mundo islâmico, entenderam por bem retaliar com cartoons onde Hitler aparece na cama com Anne Frank (e macacos me mordam se eu percebo o que tem isto a ver com os desenhos dinamarqueses…mas não quer dizer que eu não perceba com o que é que tem a ver!). A única coisa em comum que consigo entrever em dois tão díspares assuntos é que nem um nem outro são de natureza religiosa. Uma «banda desenhada sobre Auschwitz, redigida e desenhada em clave porno-gay explícita» é, portanto, uma sugestão sua cuja lógica volta a escapar-me. Para lhe confessar a verdade, caro Eduardo, caso publicassem tal coisa, eu não iria mexer uma palha para a condenar. Já é tarde para indignações óbvias, depois das teses ditas «revisionistas» (coitado do Harold Bloom!) sobre o Holocausto, livremente escritas e livremente publicadas no Ocidente, como é bom que sempre o sejam, por execráveis académicos que nem a memória dos homossexuais condenados à morte pelos nazis são capazes de respeitar, quanto mais a dos judeus.
Agradeço-lhe, antes de mais, o comentário que me dispensou. Como o Eduardo sabe, nem toda a gente preza a conversa, esse abençoado privilégio.
Parece haver um ponto que nos separa. O Eduardo põe a natureza de certo tipo de jornalismo, que seria o do dinamarquês Jyllands-Posten, acima ou à frente de qualquer debate sobre liberdade de expressão. Eu não sei dinamarquês para decidir se o dito periódico vive ou não vive da arruaça. Que a notícia do Público sugere que, pelo menos, viveu neste caso das caricaturas é à primeira vista uma conclusão aceitável. Mas não é menos aceitável, com base exactamente na mesma notícia, concluir que o Jyllands-Posten quis fazer um teste aos limites que os cartoonistas da Dinamarca colocavam à sua própria liberdade de caricaturar e satirizar. A resposta ao teste — infelizmente para o Sr. Seidenfaden, em cujo testemunho eu e o Eduardo necessitamos de confiar — provou a verosimilhança da história contada pelo autor do tal livreco sobre Maomé: houve 28 ilustradores, em 40, que recusaram o convite do Jyllands-Posten, tal como já houvera 1 ou 2 (em, pelos vistos, 3) que se negaram a ilustrar o opúsculo. Os 12 aceitantes viram os seus cartoons publicados e, apesar (ou, quem sabe, por causa) da minoria esmagadora que representavam entre colegas do mesmo ofício, obtiveram o sucesso que se sabe.
Que desta história tivessem de resultar embaixadas destruídas e bloggers ameaçados de morte, além de manifestações onde se pedia a execução dos cartoonistas, esse, caríssimo Eduardo, tenha paciência mas é um argumento que não vai lá sem passar por um problema de liberdade de expressão, seja qual for a latitude que lhe dermos. Arruaça ou não arruaça, sensatez ou insensatez, de extrema-esquerda ou de extrema-direita, cosmopolita ou xenófobo, o Jyllands-Posten estava no direito de publicar os cartoons como os cartoonistas estavam no direito de os desenhar a convite do Jyllands-Posten. É esse direito que lhes é negado por quem levou, pelas minhas contas, que são iguais às do Eduardo, quase 4 meses bem contados a transformar 12 cartoons num escândalo político internacional.
Eu pouco tenho entendido das súbitas transições temáticas de Maomé para Auschwitz, que o Eduardo não foi o único nem o primeiro a fazer. O João Paulo Sousa já tentou, aí mesmo ao seu lado, dar resposta a tão enigmática deriva. Oiço dizer que, numa parte qualquer do admirável mundo islâmico, entenderam por bem retaliar com cartoons onde Hitler aparece na cama com Anne Frank (e macacos me mordam se eu percebo o que tem isto a ver com os desenhos dinamarqueses…mas não quer dizer que eu não perceba com o que é que tem a ver!). A única coisa em comum que consigo entrever em dois tão díspares assuntos é que nem um nem outro são de natureza religiosa. Uma «banda desenhada sobre Auschwitz, redigida e desenhada em clave porno-gay explícita» é, portanto, uma sugestão sua cuja lógica volta a escapar-me. Para lhe confessar a verdade, caro Eduardo, caso publicassem tal coisa, eu não iria mexer uma palha para a condenar. Já é tarde para indignações óbvias, depois das teses ditas «revisionistas» (coitado do Harold Bloom!) sobre o Holocausto, livremente escritas e livremente publicadas no Ocidente, como é bom que sempre o sejam, por execráveis académicos que nem a memória dos homossexuais condenados à morte pelos nazis são capazes de respeitar, quanto mais a dos judeus.
Não vou insistir, caro Eduardo, na questão da reserva dos jornalistas ingleses e norte-americanos quanto à reprodução dos cartoons. O Eduardo já percebeu que eu não vejo qualquer desrespeito pelo Islão, nos ditos cartoons, que seja superior ao desrespeito pela Sr.ª D.ª Isabel II nas inúmeras séries cómicas britânicas que fazem da Família Real motivo de chacota diária nos ecrãs de televisão. (Ah, a propósito: a BBC e a ITV, afinal, mostraram os cartoons.) No Reino Unido e nos EUA há uma tradição cómica e satírica com tal pujança e liberdade de usos que, ao pé dela, esta dúzia de cartoonistas dinamarqueses faz figura de principiante. Eu acreditarei, portanto, em tudo o que o Eduardo quiser, menos nessa dicotomia que contrapõe a sensatez anglo-saxónica à «exuberância dos continentais». Também, reconheço, porque me forço a não esquecer como são bem pouco sensatas e assaz exuberantes certas violências, concretamente exercidas na casa dos outros (e os outros são sempre infinitamente mais importantes do que o outro), com as quais tem saído, por ricochete, antes prejudicado do que beneficiado o jornalismo em língua inglesa. O drama do quarto poder é que nunca se livra inteiramente dos infernos em que se atolam os outros três.
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