A política cultural do nosso teatro (II)

3. Como se terá percebido, mas convém repetir, não estou a fazer coincidir nesta argumentação «teatro em Portugal» com «teatro português». É obviamente insustentável hoje qualquer posição que se atenha ao cânone nacional de uma literatura, dramática ou não. Mas é igualmente insustentável a posição que supõe que pode haver em Portugal um teatro pedagógico-didáctico, representacional, político, no sentido mais nobre do termo, e tudo o que mais se queira (e, como vimos, quer-se muita coisa), na ausência de um corpus minimamente representativo de literatura dramática portuguesa. De facto, não parece muito admissível a ideia de um «Teatro Nacional» no qual se representasse apenas Ésquilo, Shakespeare, Calderón, Ibsen, Brecht ou Pinter… As adaptações de obras literárias não-dramáticas, o teatro da mais ou menos estrita performance corporal, nada disso afecta o essencial do meu argumento, que aliás não esquece essas e outras possibilidades teatrais.
Refiro-me apenas e ainda à política cultural dominante nos discursos de legitimação do nosso teatro e às suas contradições e impossibilidades. Porque podíamos sempre afirmar, a propósito dessa política, tal como Gustavo Rubim a recenseia, que sendo ela dominada por uma Cena Primitiva que é uma cena da Instrução (cívica, democrática e republicana), ela se vê forçosamente reconduzida a um aparelho escolar que não pode deixar de ser, nos termos em que nos é apresentada (educar os cidadãos para a democracia), de teor nacionalista. Os exemplos cívicos da escola republicana sempre foram, sem contradição, intensamente nacionalistas (a bem de um suplemento probatório, recorde-se o patriotismo republicano do recente candidato Manuel Alegre, com o seu nacionalismo de contrabando, aliás pouco dissimulado). E dizer, em contra-argumentação, que uma tal política cultural se pode (ou deve) coadunar com um teor nacionalista mínimo, sobretudo em tempos de integração europeia, não é também o mesmo que pretender que o possa de todo dispensar. Porque de facto não pode, sob pena de simplesmente cortar os vínculos com o público que essa mesma política foi educando, ou desejando educar, produzindo-se assim uma sociologia do teatro em curto-circuito.
Não é, por outro lado, aceitável a argumentação segundo a qual o nosso teatro, na sua minimização do pedagógico em benefício do performativo, ou na transformação forçosa do performativo em pedagógico, estaria a realizar a terapia pela amnésia de que uma nação com demasiada história necessita para sobreviver - essa amnésia que é uma pré-condição ontológica do performativo, o qual deve esquecer tudo o que ficou para trás no momento em que traz coisas ao mundo. Tal argumento, ainda que sofisticado, não é aceitável pela simples razão de que o teatro português nunca renunciou inteiramente ao lastro histórico do pedagógico: ter apenas Gil Vicente é curto, mas renunciar ao pouco que se tem em favor de um contrato social totalmente empenhado na criação de um palco teatral situado na no man’s land do presente, é algo que nenhuma política das instituições pode pôr em prática, sob pena de auto-dissolução. A adopção de uma tal estratégia seria suicidária por razões de simples política cultural, já que todos os discursos de legitimação de uma prática artística começam – e esta é uma verdade cansada – pelo inventário do património, ainda quando se trate de um inventário largamente ficcionado. E não esqueçamos, a este respeito, a intensa rentabilização escolar de Gil Vicente, seja dentro das paredes das próprias escolas (e muitas vezes como propedêutica a uma dramatização escolar de outros autores, dramáticos ou não), seja como argumento de cativação de públicos escolares pelas companhias teatrais, que em número significativo dependem dos protocolos com as escolas, protocolos firmados por causa de Gil Vicente e, quando muito, do Frei Luís de Sousa (a invenção recente de Felizmente há luar! como texto obrigatório no nosso ensino apenas evidencia, de novo, a debilidade do nosso património dramático), para sobreviverem.
4. O teatro português, contudo, existe, e mesmo para lá dos índices que seriam esperáveis, dada esta situação de debilidade patrimonial, com todas as suas equivocadas consequências no terreno da política teatral. As companhias proliferam, e não apenas nem sobretudo as profissionais, mas todas aquelas que se situam nos territórios da experimentação, com radicação geográfica dispersa mas tenaz. Assim como existe um forte lobby teatral, sobretudo visível em ocasiões em que esteja em pauta a política cultural para as artes (o facto de o teatro exigir «companhias» e, sobretudo, «equipamentos» onerosos e de estes terem sofrido uma acentuada expansão na última década, ajuda decerto a entender essa visibilidade).
Quem assiste aliás a um debate sobre política cultural em Portugal, sabe bem aquilo em que esta situação se traduz: numa colonização imediata e drástica do debate pela «política cultural do teatro», como se, na sua lógica profunda, a política cultural mais não fosse, ou mais não devesse ser, do que uma extensão ao sistema das artes do quadro conceptual da política cultural do teatro, tal como o apresentei no início. Pude assistir a uma impressionante demonstração desta recorrente fenomenologia no debate sobre o tema «O que é a política cultural?», organizado e moderado por Manuel Portela no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, em Novembro do ano transacto, debate aliás amplamente reportado nos média. O que faz aliás muito sentido, tratando-se de «política» cultural, já que o teatro, para o referido quadro conceptual, é arte política – a arte política por definição.
De facto, se aceitarmos esse modelo teórico nenhuma outra arte pode competir com o discurso de legitimação pública do teatro. As artes plásticas vivem necessariamente de uma experiência individual, contemplativa e tendencialmente aurática, em contexto museológico, público ou privado. No mundo das artes plásticas, aliás, os fluxos de capital cultural (e, bem entendido, do outro…) funcionam quase que na razão inversa dos discursos de legitimação sócio-política típicos do teatro, assegurando antes educação da sensibilidade e «distinção» pessoal ou institucional, muito longe, em todo o caso, da pedagogia cívica do teatro. A música é obviamente infensa a qualquer legitimação por um discurso próximo do do teatro, já que não educa para a república nem para a democracia, confinando-se antes à tradição da «educação das belas almas» (relembre-se aqui o lugar emblemático da música na estética idealista desde Kant, bem patente em noções como a de «música absoluta»). A literatura encontra-se hoje dependente de um subsector da política cultural, a «política de língua», repartida entre a Educação e os Negócios Estrangeiros, que é no nosso tempo o que resta do projecto burguês moderno de uma «religião laica» cujos textos sagrados a literatura forneceria. Não sendo já nem religião nem humanismo, a literatura é hoje instrumento de políticas como a «lusofonia» ou as da afirmação internacional da nação no circuito dos eventos em que o mercado institucional da cultura é hoje pródigo (Feiras do Livro, Capitais da Cultura, prémios como o Nobel, etc.). Mas é também, como nenhuma outra arte entre nós, património, ou não fossem seus os nomes de Camões (ou d’ Os Lusíadas) e Pessoa (ou da Mensagem), embora seja visível que tal património se encontra num processo de acentuada deslegitimação. O cinema, enfim, nunca conseguiu em Portugal produzir uma legitimação convincente para a sua existência, já que nem é plenamente «património», como a literatura (por óbvia pobreza), nem é educação cívica, como o teatro, sendo a «educação da sensibilidade» um projecto que as estéticas dominantes do cinema tornaram anacrónico. A única real legitimação do cinema entre nós, nas últimas décadas, foi a que nos foi devolvida pelo estrangeiro, entre o circuito dos grandes festivais de cinema e a crítica cinematográfica mais cutting edge: a que viu no nosso cinema, ou melhor, no cinema de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Teresa Villaverde e, mais recentemente, Pedro Costa, a mais perfeita representação da «identidade nacional» portuguesa, representação em torno da qual se foi depois tecendo uma política cultural centrada na exportação. Uma identidade, diga-se, fortemente reificada nos seus termos agónicos e «negativos», e traumática para as novas gerações de cineastas que nela se não reconhecem mas que, apesar da anomia que hoje se apoderou dessa versão identitária, não conseguem produzir uma outra.
Diria, pois, para concluir, que face à pobreza estrutural do nosso teatro, a sua representação político-cultural dominante, denunciada por Gustavo Rubim nos termos em que a tentei reconstituir, me parece uma quase inevitabilidade. Poderia acrescentar que me parece também uma posição de grande inteligência estratégica, na medida em que consegue fazer das fraquezas do nosso teatro a sua grande força: um teatro sem «objectos pedagógicos» não tem alternativa senão fazer do performativo que todo o teatro é a sua grande pedagogia, politizando-a ao máximo, com a ajuda do grande pedagogo do teatro moderno: Brecht. Ao fazê-lo, o nosso teatro não apenas se legitima social e politicamente como ainda, e essa é uma segunda manifestação de inteligência estratégica, consegue subsumir toda a política cultural para as artes na política cultural do teatro, a única que, em rigor, responderia ao espectro mais alargado do funcionamento das artes na polis. O nosso teatro torna-se assim um modelo e um exemplo do funcionamento das artes no espaço público e do que deve ser uma política cultural. Isto explica decerto a sensação de desproporção e distorção que de nós se apodera quando o nosso meio artístico é atravessado por mais uma das cíclicas crises do teatro (vide o recente caso da demissão do director do D. Maria). Não está em causa, obviamente, o direito à manifestação e mesmo à indignação. Está em causa, sim, entender a lógica que faz com que uma arte afectada por debilidades históricas que em número razoável permanecem, consiga uma ocupação do palco mediático que nenhuma outra arte consegue. E, sobretudo, que se consiga fazer passar a ideia de que cada uma das crises do nosso teatro é, ou arrasta, uma crise de todo o edifício das nossas artes, e em especial da sua tradução em «política cultural», coisa que outras artes com problemas análogos aos do teatro de todo não conseguem.
Surpreende, de facto, a forma como o teatro da nossa política cultural é condicionado, senão colonizado, pela política cultural do nosso teatro. A ponto de, no limite, nos interrogarmos se não deveriam todas as artes, entre nós, aspirar à condição do teatro. Sendo o nosso sistema das artes o que é, na sua especificidade histórica, a interrogação não deixa de ser perturbadora, para não dizer caricata. Mas, sobre revelar uma grande inteligência estratégica, esta situação condena, dentro do universo teatral, alternativas conceptuais como as delineadas por Gustavo Rubim a um destino de forçosa menoridade, ou mesmo marginalidade. Se uma tal condenação é ou não, em si mesma, uma outra e prévia demonstração de menoridade, eis o que fica por saber. Mas que, e não posso concordar mais, conviria debater.
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