Discriminações
Arrisco que o ímpeto debatedor se dá mal com a discriminação necessária dos problemas em discussão. Um problema é saber se os tais cartoons melhoram ou não o estado do mundo. Outro, radicalmente heterogéneo ao primeiro, saber se, desde que existem e independentemente do efeito que possam ter sobre o estado do mundo, reconhecemos ou não o direito incondicional de os publicar. Nem todos se interessam pelo primeiro problema; ao passo que o segundo é para todos essencial, incluindo para aqueles que apenas se interessam pelo primeiro. Conviria, por isso, não o imiscuir na discussão do segundo problema; nas condições em que o direito incondicional de publicação foi posto em causa, só há uma razão para o fazer: pôr em causa o direito incondicional de publicação.
Depois, há o recurso constante aos humilhados e ofendidos. É o tópico das anedotas: as anedotas de alentejanos ofendem os alentejanos? Na verdade, não há pessoas ofendidas ou humilhadas — há pessoas que se dizem ofendidas ou humilhadas, que interpretam como humilhação ou ofensa o efeito sofrido e imputam a quem o produziu a intenção de humilhar ou ofender. Interpretar e imputar são duas operações tão falíveis como improváveis. Quando, ao reclamar limites à liberdade de expressão, nos perguntam se reivindicamos o direito de ofender e humilhar, não só a pergunta pressupõe uma autoridade absoluta — que obviamente não existe —, acima de todos e capaz de estabelecer a efectiva ofensa e a genuína humilhação, como sobretudo estipula que aquela interpretação e aquela imputação são sempre e incondicionalmente verdadeiras pelo simples facto de se enunciarem. Ou seja, ao suposto humilhado ou ofendido é conferida autoridade absoluta para imputar e até julgar o putativo prevaricador. E pretende-se que tal absurdo se sobreponha à liberdade de dizer, de escarnecer e de rir?
[Adenda: daí a importância da literatura na democracia ocidental. Já se tem falado da herança iluminista e muito de liberdade de expressão. Ora a condição de liberdade que a literatura reclama, e de que sem dúvida necessita na sua configuração moderna, não se confunde com liberdade de expressão. Esta assegura ao sujeito a liberdade de se exprimir: mas trata-se evidentemente do sujeito responsável — imputável. A literatura assegura ou deve assegurar o direito de dizer tudo sem imputação além da ficcional: ao autor, em princípio sujeito responsável e imputável, não se pode atribuir nada do que digam as figuras dos seus livros. Sem isso não há literatura, quer dizer, sem a possibilidade de o escritor recusar exprimir-se, e exprimir não aquilo em que acredita mas aquilo que recusa, não aquilo que defende mas aquilo que repudia — e livre de lhe imputarem uma coisa ou outra, e livre, sobretudo, da força que pergunta se os livros dele melhoram o estado do mundo.]
Depois, há o recurso constante aos humilhados e ofendidos. É o tópico das anedotas: as anedotas de alentejanos ofendem os alentejanos? Na verdade, não há pessoas ofendidas ou humilhadas — há pessoas que se dizem ofendidas ou humilhadas, que interpretam como humilhação ou ofensa o efeito sofrido e imputam a quem o produziu a intenção de humilhar ou ofender. Interpretar e imputar são duas operações tão falíveis como improváveis. Quando, ao reclamar limites à liberdade de expressão, nos perguntam se reivindicamos o direito de ofender e humilhar, não só a pergunta pressupõe uma autoridade absoluta — que obviamente não existe —, acima de todos e capaz de estabelecer a efectiva ofensa e a genuína humilhação, como sobretudo estipula que aquela interpretação e aquela imputação são sempre e incondicionalmente verdadeiras pelo simples facto de se enunciarem. Ou seja, ao suposto humilhado ou ofendido é conferida autoridade absoluta para imputar e até julgar o putativo prevaricador. E pretende-se que tal absurdo se sobreponha à liberdade de dizer, de escarnecer e de rir?
[Adenda: daí a importância da literatura na democracia ocidental. Já se tem falado da herança iluminista e muito de liberdade de expressão. Ora a condição de liberdade que a literatura reclama, e de que sem dúvida necessita na sua configuração moderna, não se confunde com liberdade de expressão. Esta assegura ao sujeito a liberdade de se exprimir: mas trata-se evidentemente do sujeito responsável — imputável. A literatura assegura ou deve assegurar o direito de dizer tudo sem imputação além da ficcional: ao autor, em princípio sujeito responsável e imputável, não se pode atribuir nada do que digam as figuras dos seus livros. Sem isso não há literatura, quer dizer, sem a possibilidade de o escritor recusar exprimir-se, e exprimir não aquilo em que acredita mas aquilo que recusa, não aquilo que defende mas aquilo que repudia — e livre de lhe imputarem uma coisa ou outra, e livre, sobretudo, da força que pergunta se os livros dele melhoram o estado do mundo.]
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