05 fevereiro 2006

Ainda a bomba na cabeça de Maomé

1. Sinceramente, escapa-me a lógica dos argumentos do Eduardo Pitta a respeito do caso das caricaturas de Maomé. Fica a impressão de que descobriu más intenções indesculpáveis no jornal dinamarquês que as encomendou reivindicando o direito de «desafiar, blasfemar e humilhar o Islão» — e, vai daí, lança uma suspeita geral de ingenuidade sobre quem interveio na polémica para defender a liberdade de caricaturar Maomé na imprensa ocidental. Segundo pensa o Eduardo, «não há qualquer analogia, mesmo remota» que relacione este caso com os casos de Salman Rushdie ou do holandês Theo van Gogh, porque nem um nem outro quiseram desafiar, blasfemar ou humilhar o Islão. Pois a mim parece-me que nem Theo nem Salman estariam propriamente inconscientes de que, no mínimo, desafiavam o Islão. Tanto a lógica da fatwa de Khomeini contra Rushdie (nunca revogada, note-se) quanto a do assassínio de van Gogh deixam claríssimo que “o Islão” — entidade que, a bem dizer, não existe — nem sequer admite desafios movidos pelas melhores intenções. O fundamentalismo islâmico (esse, sim, uma realidade política inegável) condena como delito de heresia qualquer manifestação pública de crítica aos dogmas ideológicos maometanos: não há necessidade de más intenções explícitas, porque o fundamentalismo, à semelhança de todas as ortodoxias, descobre-as onde elas não se declarem. E age em conformidade, como demonstram à evidência as embaixadas a arder. O problema do fundamentalismo islâmico é que está disposto a recorrer a todas as chantagens para impor aos que não são muçulmanos a obediência à lei muçulmana. Bem ou mal, o editorial do jornal dinamarquês recusou esse abuso de poder e as consequências estão à vista.

2. O mais extraordinário na posição do Eduardo Pitta é a forma como combina a acusação de ingenuidade aos defensores da liberdade de expressão (nos quais me incluo) com uma crença sem limites na «isenção em matéria de liberdade de expressão» dos jornais ingleses e norte-americanos, que evitaram a publicação das caricaturas. O Eduardo com certeza está esquecido do que se passou no dia 7 de Julho de 2005 em Londres. Com certeza distraiu-se e, apesar do mapa-mundo que escolheu para ilustrar o post, nem se lembrou de um “país” que dá pelo nome de Iraque. Tudo isso pesa muito nas decisões editoriais, até porque não é só em Portugal que o sentido da responsabilidade se confunde com o cálculo conjuntural. A admiração, que partilho com o Eduardo, pela cultura anglo-saxónica mostra-se nestes apertos insuficiente. Há um conhecido provérbio nacional, tão conhecido que nem vale a pena transcrevê-lo, capaz de explicar em definitivo por que não aparecem reproduzidas nos jornais ingleses e norte-americanos as caricaturas da discórdia.