Antes que, neste dia infausto, o sol se ponha

Não, não, lamento decepcionar-vos, não é o título do próximo romance de Lobo Antunes. Mais prosaicamente, o que se segue é um caderno de encargos para aquele grupo de cidadãos que sente que hoje se extingue uma fase feliz das suas vidas: a década em que não tiveram de suportar Cavaco Silva. Como dizia Novalis, «Tudo é romântico quando visto ao longe». E, ante a iminência do seu regresso, todos os momentos dessa década, os felizes como sobretudo os infelizes, se nimbam de uma aura nostálgica. A nostalgia do que não regressa mais.
Verdade se diga que, se tem de ser, então seja já: mais 15 dias de épica alegrista à esquerda é mais do que um espírito pós-pessoano pode suportar. Fazer da «Pátria», à mistura com beijos no busto de Torga, um argumento eleitoral (para perceber o que dá essa mistura é só ler Portugal, do mesmo Torga), é coisa que só lembra a alguém disponível para estátua de comendador - cuja existe já num parque à beira do Mondego. Mas há sempre um número suficiente de desempregados da revolução para alimentarem quem se disponha a representá-los, a cada eleição presidencial (tem sido assim desde que Otelo decidiu «enfrentar» Eanes na sua primeira eleição).
Proponho então, a todos aqueles que não tencionam acompanhar o discurso de vitória de Cavaco, mais logo, os seguintes cartuchos para queimar até daqui a umas horas (a pólvora seca tem também as suas virtudes catárticas, moderadamente terroristas). Convém aliás fazê-lo antes que um dos intelectuais de serviço à esquerda se disponha ao elogio das virtudes do professor (ocorre logo um que há 20 anos se dispôs prazenteiramente a essa missão regeneradora). Aqui vai então uma modesta proposta:
1) Ler um bom romance libertino (o clássico de Laclos ou, já noutra latitude, qualquer das obras disponíveis do divino Marquês);
2) Ver um bom filme libertino (sugiro Coisas Secretas, de Jean-Claude Brisseur, recentemente lançado em DVD pela Atalanta, a preço mais que módico);
3) Ainda nesta matéria, recordar minuciosamente, por uma última vez, as ligações perigosas de vários ministros dos governos de Cavaco com Champalimaud, na fase das privatizações (uma calúnia, como é sabido);
4) Recordar o exemplo moral da década cavaquista, sem (sequer sombra de) jobs for the boys e esperar que, estribado nesse bom exemplo, o professor ponha cobro à crescente falta de vergonha socrática nesse domínio;
5) Comer bolo-rei à tripa-forra, de boca bem aberta, sem complexos nem fantasmas;
6) Borrifar-se, in mente, para a hierarquia e o «respeitinho»;
7) «Torcer», in pectore, para que a conjugação do apelo da universidade e o nojo da política levem o professor a desistir do segundo mandato presidencial que vem sempre, como bónus, no pacote do primeiro;
8) Recordar que o número exacto de cantos d’ Os Lusíadas é 11 (ou 9?) e que o autor da Utopia é Thomas Mann. Afinal de contas, uma vitória eleitoral é sempre também um regresso do recalcado;
9) Rever no vídeo a arruada madeirense de Cavaco, de braço dado com Alberto João, e passar a banda sonora: «Défice democrático? Nunca me passaria pela cabeça pôr em causa as decisões do povo» (adaptar a banda sonora a imagens de Hitler eleito em 1933 «pelo povo», e que se danem os puristas da filologia: Benjamin já explicou, há muito, as complacências do historicismo ante «aquilo que há»);
10) Ponderar gravemente que, bem vistas as coisas, ao longo da sua história, Portugal já sobreviveu a muita coisa má – antes de ponderar melancolicamente que 10 anos de Cavaco mais a iminência de outros 10 é areia a mais para a nossa curta vida. O melhor é ler e reler o poema de Drummond, «No meio do caminho tinha uma pedra»;
11) Desejar que Manuel Alegre durma muito descansadamente amanhã e depois, quando voltar para a bancada do PS (sim, que a ele ninguém o cala nem dá lições de moral!).
Quanto às possibilidades 12, 13 e etc., ficam para os leitores, meus semelhantes, hipócritas e irmãos. O tempo urge e há que não desperdiçar os últimos segundos.
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