U2, Presidente? U2, Helena? U2, JPC? (Conclusão)

- Eis-me de regresso, senhor. Íamos na intervenção do João Pereira Coutinho no debate. O que diz então o rapaz?
- Bom, começa por dizer que «Se Jorge Sampaio se limitasse a medalhar Bono (e os U2) por motivos artísticos, isso já seria discutível».
- Outro erudito… Ou será que ele prefere os Metallica, como o Sr. Serra?
- Bom, eu prefiro os Sonic Youth, se me permite a confissão. Mas não vale a pena dar grande importância a este incipit, porque não vai além do truísmo de quem afirma os gostos debatíveis. O interessante vem depois. Mas não imediatamente, pois a seguir vem a repetição da caricatura da Helena Matos: de nada serve dar dinheiro a África, dada a inexistência de Estados de Direito naqueles tristes trópicos, etc. O interessante, mesmo, é o que ele diz sobre a cabeça do Bono. Ora oiça: «Isto, manifestamente, não passa pela cabeça de Bono, partindo do pressuposto, duvidoso, de que ele possui uma.»
- É boa! E eu que até o acho cabeçudo. Então com aquele chapéu de cóboi que ele levou ao palácio de Belém…
- Nem mais. Mas sabe, isto está tudo ligado…
- Não me diga que entrevê nisto tudo uma conspiração?!
- Deixe-se disso, Groucho. O que está ligado é este tom desprezivo em relação a um cantor rock, que pelos vistos serve apenas para cantar e pinchar no palco, e a facilidade com que se sugere (como por exemplo a sua Helena) que a cultura pop possui apenas um valor contingente. Se não fosse assim, se se admitisse para a pop culture o mesmo valor incondicionado da Alta Cultura, seria muito mais difícil dizer, logo que se discorda de um cantor rock, que ele, no fundo, não tem é cabeça. Não estou de facto a ver o Pereira Coutinho a ser tão facilmente peremptório em relação, sei lá, às opiniões políticas do Daniel Baremboim ou do Plácido Domingo. No fundo, é sempre a ideia de que as contingências de valor não funcionam para, por exemplo, Beethoven ou Mozart, enquanto sem elas a música dos U2 (ou dos Sonic Youth) seria incompreensível.
- E não é um tanto assim, senhor? Mozart é Mozart, há 200 anos ou hoje.
- Só lhe peço que reformule a frase e diga antes: Mozart é sempre Mozart, na Europa, na Polinésia ou no Cuando Cubango. Que tal? É capaz de dizer esta frase com a mesma convicção da outra?
- O senhor está a sugerir que os polinésios ou os angolanos do fim do mundo não apreciariam o Prelúdio do Dom Giovanni, essa peça sublime da música europeia e do mundo?
- Estou antes a afirmar que o mais provável é que nem soubessem como reagir a essa peça, a meu ver, de facto sublime. Porque 1) sem se saber que aquela peça é o prelúdio a uma ópera sobre uma das concepções ocidentais do amor (o amoroso predador), ela não funciona plenamente: é apenas um pedaço de música «bonita», coisa por demais abundante; e porque 2) o pressuposto baixamente «romântico» de que a arte «atravessa fronteiras» e «dispensa saberes» tem como corolário fatal a perda da densidade e espessura da obra de arte, pois o «universalismo» ou a «reacção emotiva» enquanto operadores estéticos e princípios de tradução criam uma espécie de equipolência universal das obras que apenas contribui para o seu empobrecimento. Logo, não me parece que as dificuldades de fruição e legitimação de Mozart sejam muito diferentes das que envolvem as canções dos U2.
- Está então a sugerir que quando contrapomos Mozart aos U2 como se essa contraposição impusesse a evidência da sua hierarquia de valor, estamos a partir de um pressuposto que só funciona enquanto implícito não dissecado, é?
- Claro, Groucho. É como aquelas pessoas que dizem peremptoriamente: «A Amália não se pode comparar com a Callas!». Quem diz isso, está simplesmente a desejar ou a impor que assim seja. Mas a chatice é que não só as duas são comparáveis (o que é que o não é?) como é um acto intelectualmente desonesto, e moralmente indefensável, pretendê-lo. Vá lá dizer aos jovens da Cova da Moura que o Eminem é um cantor de merda ao pé da Callas e vai ver a reacção. Naquele contexto, a Callas simplesmente não pode funcionar (a não ser muito excepcionalmente). Ou não o pode fazer como o a priori estético pressuposto pelo discurso que vê obras como as produzidas pela Callas como «universais». Para que ela funcione (coisa em si muito desejável) é necessária toda uma pedagogia prévia.
- Logo, o Bono tem cabeça?
- Tem tanta cabeça como o João Pereira Coutinho, concordemos nós ou não com o teor do seu proselitismo em relação a África. João Pereira Coutinho que, já agora, aquando da morte de Derrida publicou no Expresso um texto digno de um cronista sem cabeça (coisa que o Bono não fez, ao que sei: seguindo uma regra da ética do conhecimento, sabendo pouco ou nada de Derrida não foi para os jornais pronunciar-se sobre os méritos ou deméritos da sua obra). Mas o Bono é um performer, está condenado a fazer figuras tristes em palco, e o JPC é um cronista elegante e cínico, que vive do cultivo da distância (ou seja, dos media). Logo, é plausível dizer de um o que não nos passa pela cabeça dizer do outro.
- A propósito: não me quer acompanhar no visionamento do DVD de A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, do Tim Burton?
- Caramba, se quero! Adoro Tim Burton e adoro esse filme. Grande cultura pop, a desse tipo.
- Com cabeça ou sem cabeça, senhor?
- Sem e com, ao mesmo tempo. É o que define a pop, não é?
- E não se pode desconstruir isso?
- Ponha lá o filme e deixe-se de disparates. Só me faltava começar a ouvir delírios derridianos a esta hora… Estou sem cabeça pra isso.
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