27 agosto 2005

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

20 de Julho

Hoje, ao dar banho à Maria, apercebi-me da última loucura em que me meti. Deitei-a na cama, só com a fralda, como tem andado agora por casa, em virtude do muito calor, e entretanto fui temperando a água da banheira, que transportei para o quarto em cima do seu suporte (uma espécie de tripé). Mas tinha de ir e vir da casa de banho para ir buscar ou água quente ou fria, sempre a controlá-la pelo canto do olho. Bastou que me distraísse por um segundo a temperar a água e, quando olho para a cama, só a vejo na borda, a cair para o chão. Dei um grito, corri e… valeram-lhe (e ao meu coração) as almofadas que previdentemente colocara no chão, a toda a volta da cama. A marota, pós o susto, pôs-se a rir, muito escancarada para mim!
Aos 30 anos, com um terceiro filho nas mãos! E sem um homem que me ajude, pois o pai do Gustavo e da Mariana pôs-se a andar já há anos (pu-lo eu, para dizer a verdade). E o da Maria… Um bebé de meses, entregue aos cuidados de uma só pessoa, é uma tarefa deveras improvável. E arriscada, para ela e para mim, que já estive à beira de vários acidentes domésticos, em consequência do transe em que vivo, evitando deixá-la sozinha e não podendo deixar de o fazer, uma por outra vez, ainda que por breves segundos. E, claro, a correria e a aflição põem às vezes a minha integridade física em risco. O que vale é que os outros já estão grandinhos – embora ainda não o suficiente para me poderem ajudar muito com a irmã - e a Paula (grande amiga!) às vezes leva-os lá para casa, para brincarem com a Matilde dela, e só regressam um ou dois dias depois, quando se mete o fim-de-semana pelo meio.
Isto para não referir a permanente sensação de cansaço, ou melhor: de esgotamento de todas as minhas reservas de energia, e grande dificuldade em renová-las convenientemente, pois o sono só me é permitido aos soluços ou então muito fora de horas. Ando, por isso, sempre ensonada e até me começo a parecer com aqueles catedráticos que ao longo dos anos desenvolvem uma apurada técnica para dormitarem nas conferências, semicerrando os olhos e parecendo, ao invés, estar a dedicar o melhor da sua atenção e empenho às palavras e ideias do conferencista. Ainda se os meus pais vivessem perto… Mas não se pode dizer isso do Canadá, mais propriamente da cidade de Kitchener-Waterloo, no Ontário, a umas dezenas de quilómetros de Toronto, ou, no sentido oposto, das cataratas do Niagara…
E, quanto ao pai da criança – e, por extensão, aos avós paternos – o melhor é habituar-me a responder como o romeiro do Garrett: «Ninguém…» Há homens que, por mais que a gente se iluda, esgotam o seu préstimo terreno em servirem a propagação da espécie, e se calhar nem lhes podemos levar a mal por isso, desde que se desempenhem da tarefa com brio e competência. Havê-los-á também com outros préstimos, mas nos meus 30 anos ainda não tive o privilégio de os conhecer. Mentira, vá… Já conheci uns poucos, mas ou foi no timing errado (para mim ou para eles), ou só tinha olhos e cabeça (e corpo) para os pais dos miúdos; mais recentemente, constato que, com significativa frequência, aqueles que interessam estão já ocupados, quero dizer, casados. Nada que me preocupe de momento, pois o meu corpo só agora se começa a libertar dos vestígios da gravidez e da sua estranha volúpia.
Preocupa-me bem mais, nesta altura, saber qual a estratégia (ou, meramente, a táctica) a desenvolver para conseguir reatar a actividade intelectual que a gravidez, e agora esta renovada ocupação a tempo inteiro (a 200% do tempo, parece-me…), me têm tão fortemente inibido. Não consigo voltar ao trabalho, não leio um único livro, e isso sim, até por causa dos prazos para a tese, começa a preocupar-me. Conseguir que a mulher-a-dias venha mais um ou dois dias? E dinheiro para isso? Ainda se pudesse escrever umas recensões para a imprensa - de poesia, de preferência, que dá menos trabalho… Mas é actividade cada vez mais mal paga e são cada vez menos os jornais com páginas dedicadas a livros. Precisava talvez de me tornar cronista, que é o que está a dar. Da «condição feminina» em geral, ou da materna em particular (afinal de contas, disso sei eu). Porque não, bem vistas as coisas? Tentar enviar para o DN (ou melhor, para o DNa, que é mais aberto) umas crónicas sobre «as atribulações de uma jovem e recente mãe». Quem sabe se não me tornaria uma figura pública, nesta era sem povoadores? Mas tenho de pensar bem o ângulo a adoptar, para que a coisa dê que falar. Deixa-me cá pensar…