Versus in porta latrinae scribendi
[Isto sim é um prólogo]
Enceta-se dentro de momentos a publicação de um conjunto de enunciados recolhidos ao longo de vários anos em portas e paredes de latrinae de universidades, bibliotecas e instituições afins. Sobreleva-se, pois, o meio material que suporta dessas mensagens efémeras: não a página em branco, mas a pele da cultura objectivada em portas, estuques ou azulejos “brancos”. Colige-se, há que sublinhar, discurso que manifesta criatividade em diferentes graus – o material reunido, por conseguinte, non olet. Uma primeira e última constrição desta obra de recolheita: todas as inscrições são autênticas. O espaço das latrinae complica aquela máxima equívoca da suposta longevidade da escrita. Nesses lugares publicamente íntimos encontramos uma escrita votada indefectivelmente à rasura, não da borracha ou do delete, mas da palha de aço, do detergente e de outros venenos. Sendo assim, republicar aqui esses enunciados supõe uma violência absoluta: imortalizar o que nunca quis ter mais do que uma inespecífica mortalidade, modo banal de ser de todo e qualquer mortal. A geografia física das latrinae, como se poderá ir comprovando, é transnacional e transcontinental. Sob a égide do “anjo do excremento”, não há senão vozes anónimas, autorias e fontes esfaceladas, sem imaginação de comunidade e sem territorialidades fortes. Ainda assim, a transcrição respeita a língua original das inscrições, por comodidade do postador e porque, como se sabe, não é possível traduzir – por outras palavras: só é possível traduzir, como de resto ostenta novamente Leopoldo María Panero, para quem uma “mulher velha” no texto-fonte é uma “mulher nova” no texto-alvo, ou vice-versa (e, acrescento, ainda bem que assim é!). Enfim, não há uma moral nem um proveito na publicação e arquivo destas inscrições latrinadas ou postadas – quando muito manifestam aquela consabida verdade de que tudo no mundo acabará no “branco” de latrinae (o problema continua a ser o da liberdade, não é?, sendo pouco ou nada relevante que o seja em contexto letrado). As inscrições compartilham com as chamadas belles lettres um traço de somenos importância: as “verdades” que encontramos num discurso e noutro são “garden variety truths” (Stolnitz, e.g.). Outra coisa não se aprende em latrinae de universidades, bibliotecas e outras instituições afins, que têm aí o lugar de todas as epifanias. Para completar o círculo: é talvez por essa razão que podemos encontrar muitas e boas citações de beletristas em portas, estuques ou azulejos “brancos” de um mundo infinitamente escavacado. Eis, pois, alguns desses bocados retroactivos passados a limpo.
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