Socráticos e pré-socráticos
- Não sei se reparou nas fotos de família da reunião do Conselho de Ministros que assinalou os primeiros 100 dias do mandato socrático, em S. Julião da Barra, Quintais?
- Ultimamente, só tenho lido coisas sobre genética, laboratórios e máquinas…
- Percebo: o choque tecnológico. O meu amigo tenta interiorizar os imperativos da modernização do país. Faz muito bem. Mas, se me permite voltar ao preto e branco, as referidas fotografias resolveram-me um dos meus enigmas políticos recentes.
- Então?...
- Não sei se se lembra, mas aquando das eleições Sócrates declarou, em entrevista, que fazia questão de respeitar uma quota de 30% de mulheres nas listas do PS ao Parlamento. Mas, interrogado logo em seguida sobre a distribuição dos dois sexos pelas pastas governamentais, foi taxativo: as quotas faziam todo o sentido para o Parlamento, mas, quanto ao governo, o que estava em pauta era a competência, pelo que as quotas não faziam sentido.
- De onde se infere que para o Parlamento pode haver mulheres porque a instituição em causa não faz da competência uma condição de acesso…
- Inferência lógica, e que também eu produzi. E que se reforçou, quando se soube a constituição do governo, com apenas duas ministras. Sócrates tinha demonstrado a que ponto é um político consequente: aonde se exige competência (aonde ele exige…) não há grandes assentos para mulheres.
- Podia ser pior…
- Sim, embora não muito… Mas, como lhe dizia, a foto desta reunião do Conselho de Ministros resolveu-me o enigma: porquê duas ministras e não três? Não sei se viu: os ministros, respeitando o protocolo destas fotos, juntam-se em filas, como as equipas de futebol - a diferença é que, tratando-se de um Forte, os ministros da frente não necessitam de se agachar, já que a foto é tirada numas escadas – e Sócrates aparece ladeado por quem? Pelas ministras da educação e da cultura.
- Um gesto de cavalheiro. Ou a demonstração do alto apreço que nutre por elas.
- A mim, a questão parece-me ter mais a ver com a articulação entre fotografia e performance… Sócrates sorri, cúmplice, para as ministras que o ladeiam (não podemos dizer «que o rodeiam», pois para isso seriam necessárias mais de duas…) e oferece assim aos fotógrafos um foco para o enquadramento. O foco é falso como Judas, claro, mas tem um efeito tremendo na medida em que o destaque concedido às ministras – que trajam ambas roupa clara, em contraste com a escura do Primeiro-Ministro: um acaso feliz, seguramente - faz esquecer que a toda a volta só há homens.
- Se assim é, dá jeito que sejam só duas, pois a simetria fica perfeita. Já viu como é sempre desagradável uma mesa de conferência com 4 pessoas? Há um que fica sempre desamparado, em relação ao presidente da mesa.
- Nem mais, caro Quintais, nem mais. Dentro do princípio de economia que regula a presença das mulheres neste governo, o número 2 faz todo o sentido: com 3 as fotos ficariam menos harmónicas (aonde pôr a terceira? atrás de Sócrates? pior a emenda…), e 4 já seria um número de mulheres competentes mais do que improvável para um socrático. Percebe agora o que é a conjunção orgânica de sexo, competência e enquadramento fotográfico neste governo?
- Só agora me ocorre, Silvestre, que tendo eu duas filhas esgotei já a taxa nacional de mulheres competentes que me cumpre transmitir à próxima geração…
- O meu amigo é um pioneiro. Melhor dizendo, um pré-socrático…
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