Pestana
Intrigado, concentrado, analítico:
— Venho aqui com conversa, e séria.
— Estou a ouvir, Groucho.
— Acabei de ler um conto que me impressionou muito: «Um Homem Célebre».
— Não me vai dizer que não gostou, ou não entendeu, ou não percebe porque é tão elogiado… Esse conto devia ser leitura obrigatória em todos os graus de ensino, nas escolas de condução e nos ginásios de yoga. Pelo menos.
— Nada disso, senhor, acalme-se. Impressionou-me a história, só isso. O homem célebre, o tal Pestana, tem um talento enorme para compor polcas. Faz polcas como quem transpira, escreve-as à tarde e na madrugada seguinte já são cantaroladas nas ruas pelos bêbados que regressam a casa...
— E morre inconsolado, e inconformado, e azedo, porque o que ele queria era compor sonatas.
— Precisamente. O homem deu alegria a tantos outros, pôs tanta gente a dançar, era conhecido, tinha glória e reputação, e nada disso o satisfazia. Desprezou o próprio talento, desperdiçou o que tinha e repudiou que era. Depreendo mal, ou estava preso aos preconceitos que hipervalorizam a cultura erudita?
— Depreende mal, acho. Essa oposição entre cultura erudita e cultura popular sustenta o conto, claro. E com perfeita precisão. Lembra-se da expressão que define o sucesso das polcas do Pestana? Chegavam cedo à «consagração do assobio». Divulgavam-se muito rápido, as polcas dele, o que quer dizer que tinha retorno, resposta imediata, claros índices de satisfação com o que fazia. Nenhuma sonata conseguiria o mesmo. Isso é a rasa simples definição de cultura popular. O sucesso no dia seguinte, quero dizer, a possibilidade do sucesso no dia seguinte.
— É o que eu digo, senhor. Por que diabo, então, ele não se satisfaz, senão porque as acha, as polcas, indignas dum músico verdadeiro? Por que diabo apenas o Beethoven seria verdadeiro músico?
— Pois, lembra uma velha história hassídica. Quando o homem morre, Deus não lhe pergunta porque não foi o Chopin: pergunta-lhe porque não foi o Pestana.
— Bem posto, senhor, ilustrou perfeitamente o que me impressionou.
— Mas olhe que não, Groucho, isso não funciona assim. Repare, em primeiro lugar, que as polcas deixam de ser dele, propriamente dele, quando o editor delas se apropria e lhe põe títulos estúpidos na mira do sucesso. Logo, quem ele «é» não depende dele, sendo antes o que lhe impõem que seja. Custo, hoje óbvio, da celebridade. Depois, a seguir a ilustração da história, só chegando à presença de Deus — isto é, nunca — o Pestana poderia saber qual o seu lugar ou função na vida. Antes não. O drama está nisso: na impossibilidade de saber em vida, enquanto a vida dura, qual o seu lugar e a sua função. Que razão definitiva o faria conformar-se? E se se conformasse com esse talento para as polcas, quem lhe garantia, em vida, que não desperdiçava oportunidades restringindo-se ao que fazia sem custo? E não é inerente ao artista o esforço, o trabalho insano de busca de qualquer coisa que não sabe bem o que seja?
— Pois, mas ele não conseguia: quando julgava que estava a compor peça original, aquilo revelava-se mera cópia de Chopin...
— Mas ele só soube isso quando morreu, Groucho. Só na morte aceitou as polcas, quando fez logo duas. Antes, repito, não podia ter a certeza: estava obrigado a compor polcas, mas obrigava-se a si mesmo a compor outra coisa. Não tinha escolha.
— Caramba, senhor, isso é trágico.
— Venho aqui com conversa, e séria.
— Estou a ouvir, Groucho.
— Acabei de ler um conto que me impressionou muito: «Um Homem Célebre».
— Não me vai dizer que não gostou, ou não entendeu, ou não percebe porque é tão elogiado… Esse conto devia ser leitura obrigatória em todos os graus de ensino, nas escolas de condução e nos ginásios de yoga. Pelo menos.
— Nada disso, senhor, acalme-se. Impressionou-me a história, só isso. O homem célebre, o tal Pestana, tem um talento enorme para compor polcas. Faz polcas como quem transpira, escreve-as à tarde e na madrugada seguinte já são cantaroladas nas ruas pelos bêbados que regressam a casa...
— E morre inconsolado, e inconformado, e azedo, porque o que ele queria era compor sonatas.
— Precisamente. O homem deu alegria a tantos outros, pôs tanta gente a dançar, era conhecido, tinha glória e reputação, e nada disso o satisfazia. Desprezou o próprio talento, desperdiçou o que tinha e repudiou que era. Depreendo mal, ou estava preso aos preconceitos que hipervalorizam a cultura erudita?
— Depreende mal, acho. Essa oposição entre cultura erudita e cultura popular sustenta o conto, claro. E com perfeita precisão. Lembra-se da expressão que define o sucesso das polcas do Pestana? Chegavam cedo à «consagração do assobio». Divulgavam-se muito rápido, as polcas dele, o que quer dizer que tinha retorno, resposta imediata, claros índices de satisfação com o que fazia. Nenhuma sonata conseguiria o mesmo. Isso é a rasa simples definição de cultura popular. O sucesso no dia seguinte, quero dizer, a possibilidade do sucesso no dia seguinte.
— É o que eu digo, senhor. Por que diabo, então, ele não se satisfaz, senão porque as acha, as polcas, indignas dum músico verdadeiro? Por que diabo apenas o Beethoven seria verdadeiro músico?
— Pois, lembra uma velha história hassídica. Quando o homem morre, Deus não lhe pergunta porque não foi o Chopin: pergunta-lhe porque não foi o Pestana.
— Bem posto, senhor, ilustrou perfeitamente o que me impressionou.
— Mas olhe que não, Groucho, isso não funciona assim. Repare, em primeiro lugar, que as polcas deixam de ser dele, propriamente dele, quando o editor delas se apropria e lhe põe títulos estúpidos na mira do sucesso. Logo, quem ele «é» não depende dele, sendo antes o que lhe impõem que seja. Custo, hoje óbvio, da celebridade. Depois, a seguir a ilustração da história, só chegando à presença de Deus — isto é, nunca — o Pestana poderia saber qual o seu lugar ou função na vida. Antes não. O drama está nisso: na impossibilidade de saber em vida, enquanto a vida dura, qual o seu lugar e a sua função. Que razão definitiva o faria conformar-se? E se se conformasse com esse talento para as polcas, quem lhe garantia, em vida, que não desperdiçava oportunidades restringindo-se ao que fazia sem custo? E não é inerente ao artista o esforço, o trabalho insano de busca de qualquer coisa que não sabe bem o que seja?
— Pois, mas ele não conseguia: quando julgava que estava a compor peça original, aquilo revelava-se mera cópia de Chopin...
— Mas ele só soube isso quando morreu, Groucho. Só na morte aceitou as polcas, quando fez logo duas. Antes, repito, não podia ter a certeza: estava obrigado a compor polcas, mas obrigava-se a si mesmo a compor outra coisa. Não tinha escolha.
— Caramba, senhor, isso é trágico.
— Não, Groucho, é moderno.
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