06 julho 2005

Ideias de canário

— Eh lá, Groucho, que livro leva aí?
— Tirei-o do pacote que chegou ontem. Não se admire, tenho a minha curiosidade afinada; já sabia que me dava um, tratei de tirar outro. E olhe, nem de propósito, depara-se-me isto, que me assenta como se de encomenda.
— O quê?
— Já mostro, antes diga-me só o que é uma loja de belchior.
— É uma loja de compra e venda de coisas usadas. No Rio. Deve ter havido um Belchior que abriu a primeira... Mas mostre lá o que o deixou tão açodado...
Ideias de canário... Um homem entrou numa dessas lojas de belchior, e quando ia a sair viu uma gaiola com um canário. Aí pergunta, e passo a ler:
«— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
— Como? interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.»
— Já percebi: o que lhe reteve a atenção foi a definição que o canário dá do mundo...
— Acertou. Ora veja: «— ... o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.» Instrutivo, não lhe parece?
— Cuidado com as inflamações de alegoríase, Groucho. Vá lendo o resto, que o canário dá outras definições do mundo no seguimento.
— E eu não sei? Olhe esta, no final, e dada ao mesmo homem, quando este o reencontra num jardim e lhe fala do mundo: «Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo /... / é um espaço infinito e azul com o sol por cima.»