Ainda os U2
- Se o senhor me permite…
- Já se penitenciou devidamente junto do Sr. Baptista por aquela indelicadeza a propósito do Harry Potter?
- Vai-me desculpar mas essa é matéria reservada, entre mim e ele.
- Desde quando é que um desaforo em público é matéria reservada? Isso é como quando um homem agride a mulher em público: a questão deixa de ser doméstica para ser pública (e política). Ademais, a violência doméstica é sempre, por definição, pública.
Coisa análoga ocorrre, a meu ver, quando um pai bate num/a filho/a sem qualquer razão. Ainda no outro dia vi e estive para intervir: um calorão, numa esplanada, um pai lia o jornal e obrigava duas miuditas a estarem quietinhas na cadeira (como se estivessem também a ler o jornal…) enquanto a mãe não regressasse das compras. Como é natural, elas puseram-se a brincar e saltar. Vai daí, o educador lusitaniensis decide chamá-las aos berros e bate-lhes, de forma inteiramente gratuita. «É para veres que tens de obedecer ao pai!». Estive mesmo para lhe dizer que, em vez de lhes bater, melhor seria dar-lhes atenção. Mas como o meu corpo me pareceu escasso para uma gesta tão impopular, fiquei quieto, embora enervado.
Se quer que lhe diga, acho que isto devia ser proibido e punido por lei. Aliás, é chocante a frequência com que se assiste a cenas destas entre nós, e em todos os níveis sociais e culturais. Sobretudo, choca-me a «normalidade» que por cá envolve estes gestos. É pai, tem direito a. Ponto final. Há que transformar este ponto final em interrogação, pelo menos, e com urgência… As pessoas convencem-se de que, por a reprodução ser uma questão natural (embora nem para todos), a educação é também da ordem da natureza. E nada mais «natural» do que bater, em contexto educativo. Até porque como lembram, pressurosos, os nossos pediatras e pedopsiquiatras, uma palmadita não faz mal nenhum. É para o bem deles… Afinal de contas, o rabinho até já vem almofadado… Deus, na sua admirável presciência, já adequou o órgão à função!
- Creio que o senhor remontou um tanto…
- É possível. Mas olhe que acho que o senhor é que precisava de que o Sr. Baptista lhe desse umas nalgadas.
- Enfim, o que eu tenho de ouvir neste clube… Mas sabe, eu queria regressar àquele ponto que o senhor há pouco introduziu por meio de um verso dos U2. Aquele que reza «You miss too much these days if you stop to think».
- «Que reza»… Muito bem dito, ou não fossem eles irlandeses e o Bono um pregador…
- O senhor dizia que esse verso é uma excelente descrição das aporias da universidade no nosso tempo. Mas então, em que é que ficamos? A universidade deve ou não parar para pensar?
- Bom, a meu ver tem de parar periodicamente para pensar. A sua própria definição implica essa paragem. Quando digo periódica não me refiro a coisas sabáticas, de 7 em 7 anos. Refiro-me à prática diária, no sentido em que cada aula na universidade deve ser uma ocasião para deter, suster, suspender o fluxo frenético (e tantas vezes histérico) do presente. Não há universidade, ou escola (ou pensamento, já agora), sem isso, embora quase toda a gente na universidade defenda o contrário. E já nem falo dos opinadores sobre a universidade e dos ministros e secretários de estado – fujamos rapidamente dessa legião.
- É muito compreensível que o defendam, diga-se. Pois como é que a escola, e a universidade por maioria de razão, pode ignorar o presente e isolar-se na sua torre?
- Ninguém falou em ignorar o presente e ninguém desejou torres, ó criatura simplista! Só que há uma diferença fundamental entre viver o presente e pensá-lo. Para o pensarmos, não vejo como não o suspender, pelo menos momentaneamente. Sendo que devemos admitir que por vezes a melhor forma de entender o presente é fugir para bem longe dele, pois a sua explicação mora quase sempre algures. Quem se quer entregar à euforia do presente, que se dedique à «noite», ou à política, mas não à universidade. Daí aliás a importância de estudar o passado, e todo o sótão de anacronismos que o presente segrega, reagindo o mais possível à própria dinâmica destrutiva do presente. Como diz o seu querido Sr. Baptista, se calhar, para entendermos o desgraçado romance português de hoje – ou melhor: para entendermos os equívocos que o conduziram até isto -, o melhor é ir ler Camilo. Ou Júlio Dinis. O anacrónico não é o ultrapassado, pelo contrário: é aquilo que se nega à lógica da ultrapassagem, estando por isso disponível para ser de novo convocado assim que o presente o entender. Um qualquer presente, o de hoje ou de daqui a séculos, na lógica abstrusa e renitente da temporalidade longa. É também por isso que, a meu ver, devemos condenar a queima de livros. Não porque não haja livros que não mereçam a fogueira…
- Essa agora!
- Deixe-se de histerismos culturais. É o que mais há, e o senhor está farto de o saber. Continuando: não porque não haja livros que não mereçam a fogueira mas porque não sabemos, não podemos saber, quais os livros que o futuro seleccionará, quais aqueles em que se reconhecerá. Por essa razão, a única atitude eticamente correcta é guardá-los todos. Mesmo os meus… Ou o seu opus sobre retórica…
- Dá-me ideia que o senhor está a querer evitar a questão da aceleração da informação, e de tudo, a bem dizer, hoje, com o seu rol de consequências. Parar para pensar tem hoje consequências bem mais pesadas do que há décadas.
- Não podia concordar mais. Precisamos cada vez mais de pensar o presente (sempre precisámos, e sempre o fizemos, mesmo quando líamos Camões ou Homero), razão pela qual precisamos cada vez mais de pensar o que foge ao presente e este oculta, sem contudo conseguir apagar. É por isso que gosto de dar aulas, sabe? Porque naquele precioso tempo em que dura a aula, o presente fica à porta. É isso, creio, a «economia política do tempo educativo». Parece pedante mas se pensar bem vai ver que não é: tempo suspenso, não mimético, não vazio, escassamente cronológico, tempo sem rumo necessário ou imposto de fora, tempo lento, ruminante…
- Por outras palavras: um luxo!
- Se quiser. Eu prefiro chamar-lhe um privilégio raro. Para os/as estudantes e para mim. E aliás, um privilégio exigente, já que só a ele acedem os que estão disponíveis para pensar. E não são assim tantos, como sabe.
- Uns privilegiados. Uma elite.
- Refere-se aos agricultores da CAP, a tal meia dúzia que beneficia dos milhões da PAC? CAP-PAC, isto é quiasmo ou coito, senhor Groucho?
- Demagogia…
- Ou está a pensar na vasta elite que se passeia pelas nossas estradas de jipe, BMW, Mercedes, etc.? Olhe que não vejo disso noutros países da Europa… Ou no Canadá…
- Inveja…
- Tem toda a razão: quando hoje leio o que se escreve sobre a universidade, tenho quase sempre a sensação de que tudo cabe numa dessas duas alíneas: demagogia ou inveja.
- Não era bem isso que eu queria dizer…
- Eu sei, mas aqui a auctoritas sou eu, brincamos?! Afinal de contas, a aula só acaba quando eu disser que acaba! Por isso, esteja caladinho e vá tomando apontamentos.
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