28 junho 2005

Leituras do Groucho nas termas

O bocal de vidro, encostado à parede, em cima do armário: oculta-o (quase não se vê) a cimalha talhada como o frontão dum templo (volutas de cedro, vagamente florais) e é preciso trepar a uma cadeira para o descobrir: enorme, sem gargalo, com a rolha coberta de parafina.
Talvez a primeira falha na sequência familiar. Uma das intrusas trouxe para dentro de casa o óvulo doente: deteriora (quando não extingue) o outro gérmen, introduzindo-o (desvitalizado) no fluxo hereditário. Fácil sugerir a gota de gisandra, a tendência mórbida para a indiferenciação. Óvulo e gisandra seguem processos degenerativos próprios, corrompem a seu modo certas leis (e certa intimidade) da genética, mas tendem a instaurar uma única tara nos dois reinos mais vulneráveis. Ignora-se o carácter divino (ou demoníaco) desta evolução; ignora-se, em temos gerais: o instinto da família considera-o maléfico, já se vê, embora o tenha como sagrado (mecanismos de culpa por esclarecer).
(...)
O feto flutua num útero de vidro, num sepulcro fechado a parafina. Flutua, não será o termo: imerso, enrolado sobre si mesmo, dá no entanto essa ideia. O álcool (o formol?) foi-o ressequindo e esfarelando; dia a dia, acumulou-se no fundo do bocal um depósito amarelado: atinge agora metade da emulsão; a metade superior (muito brilhante) hesita entre o pérola e o branco (assente sobre a espessura do depósito, o pequeno fantasma parece de facto flutuar: informe, placentário).

Carlos de Oliveira, Finisterra. Paisagem e Povoamento