14 junho 2005

Dois escritores

- Não sei se reparou, Sr., mas quem morreu ontem foram dois escritores.
- Dois escritores, Groucho? Francamente, e se me permite desenterrar do baú a discriminação barthesiana, eu diria que morreu um escritor e um escrevente.
- Francamente digo eu, Sr., pois após essa discriminação (tão repleta de boa consciência para os «escritores») já muita água derridiana correu debaixo das pontes. Insisto: dois escritores. E nem vale agora, para o meu propósito, discriminar neles o Bom (Eugénio) e o Sofrível (Cunhal).
- Noto nas suas palavras um equívoco – Cunhal em vez de Manuel Tiago – e um excesso de relativismo… Anda a precisar de ler mais Vasco Graça Moura (e João Carlos Espada).
- Equívoco nenhum, Sr. Quando falo no escritor Cunhal não me quero referir apenas à sua obra ficcional (que inclui também contos infantis, como sabe), mas à sua longa produção escrita desde a juventude comunista. Por exemplo, o Se fores preso camarada, o Rumo à Vitória, etc. A questão do relativismo não é, por isso, para aqui chamada. Porque aquilo que quero dizer é que Cunhal é escritor porque é comunista.
- Não sei se o acompanho.
- É simples. O comunismo foi, em grande medida, uma grafomania e, a esse título, não é irrelevante a coincidência histórica entre o seu advento e o da imprensa oitocentista. O comunismo produziu um paroxismo de textos, entre manifestos e para-manifestos, intervenções doutrinárias, programas e revisões dos ditos, enfim, toda a parafernália escritural de que uma vanguarda necessitava em tempos em que o jornal, o panfleto, o opúsculo, o livro, digamos, as rotativas, eram a pré-condição da arregimentação das massas, na era delas. Questões de materialidade da comunicação, como diria o Sr. Gumbrecht. É nesse sentido que Cunhal é um escritor de pleno direito: porque integra a época em que o espaço público foi conformado pela letra impressa, com as dificudades acrescidas, é certo, da clandestinidade. Mas, a respeito disso, já viu a dimensão da mitificação que o PCP produziu da figura do tipógrafo (ou tipógrafa) clandestina? Não é revelador?
- Em todo o caso, o paralelo com Eugénio faz-me cócegas, Groucho.
- Não diria que é um paralelo, embora de facto me pareça que não é inocente o paralelismo entre as duas épocas devolutas que a data de ontem, com o atraso típico entre nós, de certo modo encerra: a época da literatura e a época do comunismo. Ambas foram manifestações, diversas é certo, da mesma grafomania, que se tornou, sobretudo do lado da literatura, grafocracia. Lembre-se de Mallarmé e da modernidade literária sequente com toda aquela exorbitante ideia de uma espécie de redenção secular (ou nem tanto) pelo Parnaso-Livro. O tal «Livro», palavra que ele pronunciava com toda uma unção professoral, em que se vazaria o mundo inteiro. Mas repare que se atentarmos na forma como o comunismo congelou as suas verdades nos Textos Sagrados de Marx, Engels & Lenine, a grafocracia regressa pela porta travessa da filologia, da exegese e do seu (fortíssimo) controlo institucional da interpretação. Uma figura como Cunhal, aliás, funciona a um tempo como escritor e «controleiro da interpretação», trate-se dos seus textos ou dos dos Padres da Igreja. É curioso notar aliás que no dia de ambos os falecimentos o Guardian anunciava que os Media Studies crescem exponecialmente em Inglaterra na preferência dos estudantes, começando a pôr em risco o predomínio do English. Sem querer abusar de coincidências e simbolismos – mas como não o fazer nestes últimos dias? – , creio que tudo isto nos indica aquilo que eu lhe queria sugerir: morreram dois escritores e, mais do que isso, dois filhos da moderna, e já póstuma, grafomania (e grafocracia).
- Caramba, Groucho, você assusta-me. Para acalmar, vou ali ler uns jornais naquele terminal.